Lançar-me ao mar

Há algum bom tempo tive um sonho muito especial, acredito que o mais impactante da minha vida até hoje.

Estava às voltas com a pergunta sobre fazer ou não um mestrado sobre meus cadernos de sonhos desde 2001, no departamento de Ciências da Religião. Mas precisaria trazer um formato acadêmico para todo esse conhecimento inominável. Como uma guardadora de sonhos, sinto uma grande responsabilidade diante do Mistério, meu grande e verdadeiro mestre, professor. Seria como profanar o sagrado.

Sim, demorei muito tempo para me autorizar a ser verdadeira discípula do Mistério, a me entregar ao desconhecido e este sonho, intitulado entre os estudiosos como um “Big Dream”, falava exatamente sobre essa Jornada.

A narrativa do sonho: estava saindo num barco à vela com minha filha mais nova, no inicio da noite. Já afastado da costa o barco para e vejo um bicho enorme, negro, muito comprido, serpenteando ao nosso redor. Ele/ Ela se ergue e apoia a cabeça no barco. Uma serpente negra me olha nos olhos e se comunica. Ela parece me dizer: “Venha, não tenha medo, pode mergulhar, pode seguir mar adentro”. Mas não é claro o que sinto e fico com dúvidas se a serpente é mansa ou instintivamente pode me dar um bote. Seria ela um ser mágico? Ou era um animal peçonhento? Estava a me hipnotizar, ou era um chamado da alma? Ela retorna ao fundo do mar, e eu e minha filha respiramos depois dessa forte emoção. Então minha filha pergunta:

“Mãe, você pegou o “outro” chão de madeira do barco?

“Não, filha, eu esqueci. Precisaremos voltar.”

E o sonho termina com esse retorno.

Trabalhei muito esse sonho, e sigo trabalhando nele. Realmente foi um divisor de àguas, porque decidi não fazer o mestrado acadêmico e sim seguir um trabalho mais intuitivo e criativo. Cheguei a uma simbologia para esse “segundo chão do barco”: fortalecer minhas bases antes do mergulho ao Insconsciente. Mas não sabia exatamente como isso se daria. Apenas segui os caminhos mais genuínos que se apresentavam, resistindo bravamente às seduções ilusórias.

Passei por noites muito sombrias na alma, pouco antes da Pandemia. Tive um aborto, era apenas um saco embrionário sem feto, que nomeei “Solzinho”. Uma falta de sentido absoluta sobre toda narrativa socialmente aceita e compartilhada tomou conta de mim, mais uma vez. Pessoas escravizadas em seus trabalhos, crianças abandonadas em suas casas, telas e mais telas, contas e mais contas, enfim, um enredo que todos conhecem bem. Simplesmente não se encaixava dentro de mim. Algo gritava. Por liberdade? Por profundidade? Por Mistério.

Quando a Pandemia de fato chegou aqui no Brasil – uma segunda feira 16/03/2020 – dois dias depois do meu aniversário, eu simplesmente “cheguei em casa”. O isolamento rapidamente me mostrou as escolhas feitas nos últimos anos de uma forma muito clara. Eu estava exatamente onde eu queria estar. Uma sensação de ter esperando a vida inteira por este momento chegar: retornar à minha casa: sem compromissos, sem horários, sem escola, sem agenda, sem segunda ou domingo, sem vida aprisionada e instituída.

Foi a grande oportunidade de fazer o meu mergulho interno.

O medo rondando lá fora, mas dentro da minha casa eu buscava estar presente, inteira.

Nada de noticiários. Debrucei-me nas leituras. Recebi apoio nas Jornadas com a Ana Thomaz, mulher corajosa, que se colocou de pé e nos ajudou na Travessia e nos Princípios. Para onde caminhamos coletivamente? Sim podemos pensar e refletir sobre isso.

Quanto mais eu desapegava de tudo, mais eu encontrava Vida e Paz. Não foi e não é simples, nem exatamente claro ou só confortável, mas eu passei a confiar nesse sussurro que me contava do próximo passo.

Meditei praticamente todos os dias. Rezei e entoeei um canto simples e meu. Jardinei muito. Tantos caroços brotaram na Terra. Cozinhei as comida saudáveis mais impensadas e deliciosas. Tomei muitos chás nas chaleiras dos meus avós, até então guardadas no armário. Acompanhei a Lua. Dormi em barraca no jardim nas Luas Cheias e fiz muitas fogueiras a céu aberto. Tudo o que eu pegava para ler e que me esperava na estante dizia sempre desse lugar, vivo e entregue. Já estava tudo aqui, em casa, dentro de mim, só me aguardando chegar.

Simplicidade e naturalidade.

E a sensação de vazio aprofundava-se, a cada mês recolhida à casa. Um vazio silencioso. Pode cair. Deixa cair. Solta. Derruba. Quanta verdade nas escrituras: o apego causa muito sofrimento mesmo. E a cada respiração que entrava e soltava, um passo adiante dentro de mim. O vazio é fértil. Encontrei este tesouro, meu centro, minha base, meu chão. Queria poder ter um mapa e dividir com outros, com meus pacientes no consultório, com minhas filhas…mas não há mapas, é uma Jornada Singular e Transpessoal.

Chamo este processo de “Retorno à Casa Interna”. Tive muitos guias neste caminho: o Centro do TaiChi, o Caminho da Virtude Budista, O Vazio Fértil da Fenomenologia, os Símbolos dos Sonhos, O Processo de Individuação do Jung, o Silêncio da Meditação, As Nuvens do Mistério, o Sangue dos meus Ciclos, O Jardim Secreto do Coração. Muito trabalho com as mãos. E buscando alinhar o pensar, sentir e agir. O que eu penso, eu faço? O que eu sinto, eu acolho? Caminho na direção dos meus sonhos?

Muita honestidade para olhar de verdade as dores mais antigas e ainda presentes.

E essa verdade se tornou sagrada para mim também: quanto mais eu acolho a minha sombra e percebo que dela não estou separada, mais liberação eu conquisto, mais presença amorosa, tranquila. Porque há menos medo dos monstros internos. Eles não são tão desconhecidos assim.

Chego então ao meu encontro com o poeta Khalil Gibran em “O Profeta” e reconheço aquele mar que clama por ele, reconheço o meu sonho, reconheço o chamado. “Pode vir”.

A casa, o ninho, este centro já foi ativado. O Retorno à Casa Interna era o chão do meu barco, minha base, um reencontro com minha Alma, com a Natureza, com a Graça da Vida.

Sinto que é chegada a hora de lançar-me. Colocar meu barco ao mar. Uma travessia. Não tenho certezas, nem seguranças, e na mitologia do sonho, há também a morte, a serpente do Caos. Sem Morte não há Vida. Sem risco não há por que confiar.

Eu sei o que pulsa aqui dentro. Céu estrelado, vento no corpo, terra brotando. Profundidade das águas internas.

Símbolos,

imagens.

Silêncio.

A bússola está dentro do peito.

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